Parabéns por um tão raro discurso nesta casa. Tudo isto é ficção, a que se rende realidade.
Ernesto Rodrigues, Passos Perdidos
Vamberto Freitas
Numa das recentes apresentações deste seu romance, de título e significado inevitavelmente polissémicos, Passos Perdidos, Ernesto Rodrigues traçou dois fios condutores da trama ficcional por ele urdida – o diálogo com algumas obras canónicas portuguesas, com Camilo Castelo Branco (A Queda De Um Anjo) e Eça de Queirós (O Primo Basílio) em primeiro plano, e ainda alusões ou citações de alguns outros ficcionistas e poetas, com Camões ao centro e logo nas primeiras páginas através de versos mais do que pertinentes aqui (Os bons vi sempre passar/no mundo graves tormentos), e depois a também inevitável “realidade” política que desde há décadas subverte todo o projecto que foi a Revolução de Abril de 1974, ou melhor dito, todo o liberalismo ou democraticidade que saiu da nossa guerra civil de Oitocentos. Não há qualquer “ansiedade de influência” nestes gestos do autor, mas sim a continuidade que uma grande Tradição literária e discursiva nunca deixa de provocar nas melhores obras de arte que partem de uma mesma língua e/ou geografia de afectos e comunidades imaginárias, e sobretudo de identidades partilhadas. Um escritor sem memória histórica terá muito pouco ou nada a dizer a outros num acto de criação, por mais “artifício” que se lhe reconheça. Palavras cruzadas também requerem algum conhecimento vocabular e noções de cultura geral, mas são de todo vazias e significam absolutamente nada. Alguma ficção pós-modernista, a partir doa nos 70, tinha pouco mais do que o umbigo próprio para descrever ou auto-mortificar-se, a sua comédia raramente passando das patéticas biografias reinventadas e da confusão que é estar-se vivo sem uma ideia de rumo pessoal ou comunitário, ou então fechado no egoísmo de rapazes e raparigas privilegiadas nas sociedades ocidentais. Pouco já os lêem, depois de passados os quinze minutos de fama e estrelato. Aliás, também os anos de suposta ou falsa inocência social do pós-Guerra já passaram, foram implacavelmente desmontados neste últimos tempos, estando de regresso, creio, a arte literária que tem a sociedade como tema, que volta a ser a fonte de beleza e interpretação, de ideias e reflexões, e na qual só se distingue a forma se o conteúdo a merecer. A arte literária é, sempre foi, esse gesto à procura do diálogo, a estética oferecida como afirmação ou sugestão do estado ou da condição humana, vivida e testemunhada num determinado lugar e tempo. “Política e literatura” é o mesmo que dizer “sociedade e literatura”, e em língua portuguesa as obras primas de ficção, a partir do século XIX, a partir precisamente dos dois nomes insistentemente convocados por Ernesto Rodrigues nesta sua obra, Camilo e Eça, estabeleceram as suas temáticas e, até, o seu olhar, quase sempre pela sátira pura, a paródia, a fábula carregada de humanidade.
Esqueçamos a trama de Passos Perdidos – uma tentativa de corrupção legislativa na que ainda chamamos “a casa da democracia” por parte de determinados interesses financeiros – e destaquemos alguns momentos, dizeres e personagens que giram em volta da Assembleia da República e arredores, especialmente políticos, banqueiros e jornalistas, o triângulo de tudo e todos que fazem da vida pública o meio principal de levitação, horizontal quase sempre, aos céus, à glória e ao enriquecimento por “qualquer meio necessário”. Os personagens do romance são poucos, mas necessariamente todos relacionados por laços secretos e de sangue, de sugas-várias, ou por outras prosmicuidades nas quais a cama é de somenos importância e honradez, na maior parte dos casos. Um autor com a formação académica e intelectual e a obra literária ou de investigação de um Ernesto Rodrigues não podia construir uma narrativa “política” da nossa actualidade que não fosse esta. Para além do referencial muito português atrás referido, digamos que o romance funciona não somente como uma espécie de súmula do muito quanto já foi dito e escrito ao longo de quase toda a nossa história nacional, como ainda partilha afinidades com outros escritores e obras além-fronteiras. Não sendo Passos Perdidos um romance futurista ou sobre o totalitarismo histórico, não deixa de fazer lembrar um George Orwell, particularmente o do já tão clássico como profético 1984 – a corrupção semântica generalizada de um simples vocábulo e ainda mais das linguagens em tudo referentes às sociedades e seus “negócios” resulta da corrupção generalizada de quem tem o poder de fazer, refazer, dizer e redizer as acções de quem governa simplesmente para se governar, o poder pelo poder (freudianamente entendido), a noção de civismo ou de “comunidade” uma qualidade – uma “fábula” – nunca lembrada pelos servidores dos seus patrões, ou pelos trepadores da glória pessoal, sem um mínimo de ética ou pudor. Dir-me-ão que assim sempre foi, e provavelmente sempre será. Responderei que os que constituem bolsas de resistência ao descaramento e comportamento atávico de governantes e outros agentes poderosos das finanças que se escondem por detrás de linguagens, uma vez mais, corrompidas, portanto sem qualquer sentido transmissor da verdade e muito menos do bem comum, tal como se tem tentado defini-lo desde o Iluminismo, serão sempre os escritores, os sucessores dos antigos “cronistas” que adivinhavam o analfabetismo dos seus senhores mandantes para, tantas vezes entre linhas e em metáforas brilhantes, avisarem as gerações vindouras da canalha a quem serviam, e tinham de servir. Nem todos são Velhos do Restelo, e antes fossem no que diz respeito ao sentido de nação ou pátria. A beleza deste género de literatura também reside aí – a confirmação de que a imperfeição humana nunca deixa de ir aos seus extremos, que a riqueza de uns é a opressão e vitimização de todos os outros, e cabe precisamente à arte não esquecer a dialéctica da história em busca de uma síntese racional, que poderíamos ainda redefinir simplesmente como “decência cívica”. A longa epígrafe deste romance vem de a Arte de Furtar, “Dos que furtam com unhas políticas”. Uma sátira política tem as suas regras: o riso é cruel, é “o pisar e repisar da vítima”, como diria entre nós José Martins Garcia. Só que a “vítima” somos nós, os que não lêem juntamente com os que lêem sofisticados romances como este. Atravessamos os Passos Perdidos rumo às sessões plenárias com os que para lá vão, sentam-se sem nada dizer anos fora, alguns os predadores e predadoras profissionais, outros os “borboletas” da moda, hoje em dia em estilo fino e próprio, conforme a vontade Armani e afins, a comédia humana uma encenação que vem de longe, os narradores recorrendo a discursos de séculos passados, nestas páginas comicamente repescados como se originais ou corajosos fossem, as suas generalidades dirigidas a todos e a ninguém. Tal e qual – é só ligarmos o telejornal num dia qualquer.
“Sodomizaram-no?” – pergunta em entrevista uma jornalista ao deputado conservador e que durante quarenta anos não abrira boca, a propósito de outro colega seu, mas cujas andanças estão em causa. “Ele não sabia – deduz o narrador do momento – o que isso era, pois o vocábulo não frequentava o hemiciclo (ao menos, a horas decentes), não subira à tribuna de honra nem o recordava dos códigos, audições ou debates, logo, não constava do diário das sessões, cujo vocabulário mais terso ele registava em caderninhos azuis de folhas quadrículas, na falta de palavras cruzadas, que se recusaria a buscar na Imprensa profana, com que os colegas adormeciam. Na capa, inscrevera DLP, que julgavam dicionário da língua portuguesa; era, sim, dalábia parlamentar”.
Passos Perdidos é essa narrativa meio clara meio obscura, um jogo de sombras e espelhos entre todos os seus personagens, e muito especialmente uma interpelação sobre o que constitui ou não a nossa identidade, pessoal e colectiva. Quem somos, e que povo somos? De onde veio esta geração em tempos já pós-modernos e pós-revolucionários, que nos governa e assalta como se nada tivessem aprendido do passado, como se história tivesse sido totalmente apagada, ou pelo menos nunca aprendida? “Corrupção” ainda quer dizer alguma coisa entre nós? Será que os teóricos literários mais radicais têm razão quando falam já numa idade pós-humana, não se referindo, supõe-se, exclusivamente às tecnologias hiper-avançadas que parecem fazer de nós meros instrumentos de quem as detém e mobiliza na luta pela supremacia absoluta? Ernesto Rodrigues já viu e viveu muito mundo para além do país da sua nascença, já muito escreveu sobre história e discurso público, que também dão pelo nome de “jornalismo” e “política”. Este seu romance é uma outra transfiguração de todos esses saberes e percursos, os nossos próprios dias projectados em literatura, que é sempre o testemunho mais duradouro e, sim, verdadeiro.
Dia 25 de Fevereiro, a centenária livraria Ferin era pequena para acolher as dezenas de transmontanos que se juntaram a vários escritores ilustres para assistirem, por antecipação, à contemporânea queda de um anjo. É-lhes apresentado José Luciano de Castro em atualíssimo discurso de 150 anos pela voz autorizada e eloquente de Ernesto José Rodrigues. O referido discurso subirá no próximo dia 9 de Abril à tribuna parlamentar da Assembleia da República a ser lido por João Felix Filostrato em inédita intervenção, depois de quarenta anos de apagada carreira parlamentar. A sua queda acontecerá logo depois como forma de exposição das várias fraquezas e fragilidades da vida política portuguesa.
O romance Passos Perdidos do nordestino Ernesto Rodrigues mergulha nos meandros político-partidários pela visão poliédrica de jovens protagonistas envolvidos em atividade suspeita que apenas por ser direta e exoplícita se afasta da realidade: um banco de investimento quer vender um projeto-lei a um deputado.
À volta deste objetivo linear desenrola-se uma trama de acontecimentos vários de índole diversa e complexa. Não espere o leitor uma narrativa linear e explícita. Essa pode ser a visão do historiador. O autor é romancista e interessam-lhe mais as visões dos vários intervenientes, mesmo que desfocadas, irreais ou totalmente enganadoras, como salientou. Resulta dai uma narrativa caleidoscópia. As propositadas confusões de nomes das gémeas Nádia e Nídia e dos tríplices homónimos João Félix envolvem-nos numa teia de sentimentos onde se defrontam interesses vários e factos diversos. Ressaltam inequivocamente realidades que escapando aos inconseguimentos, dos sagrados softpower da política caseira, se perfilam perante o leitor obrigando-o a olhá-las de frente.
A primeira é a frágil estrutura do quarto poder (a comunicação social) facilmente manipulável pela sua enorme apetência pelo espetáculo efêmero em detrimento da realidade por trás da aparência mediática. Não esquece a falta de estadistas nos partidos (em todos, de forma geral mas sobretudo no PNCNP - Partido Nem Carne Nem Peixe), lamento ouvido de viva voz na Rua Nova do Almada. Ressalta, de entre outras, uma proposta de elevado potencial a merecer conveniente e séria reflexão: substituir as dezenas de deputados borboleta que lançam beijos como causas fraturantes que se limitam ao “quem me dera”, em estado permanente de quase quase a intervir, por uma mão-cheia de deputados, realmente interventores ostentando em cartaz visível o número de votos que representam sem esquecer o nome do escritório de advogados que concebeu e redigiu cada uma das leis em “discussão”. Ganhava o erário púbico e, sobretudo, a transparência da causa pública. O ambiente parlamentar poderia ser preservado com recurso a aplausos, apupos, apoios e apartes pré-gravados.
Refira-se, para finalizar, que a ação decorre à volta da semana da paixão tirando partido da ignorância de quem só pensa em números, sobre a condição de feriado da sexta-feira-santa, aproveitando para nos deixar mais uma alegoria de Cristo a morrer por nós entre dois ladrões perdoando a dívida ao mais inteligente, optando o outro pela falência fraudulenta.
Já depois de concluída esta crónica fui sabedor da amarga notícia da morte de Amadeu Ferreira. Não sendo competente para escrever sobre este enorme vulto da cultura mirandesa, nordestina e portuguesa, não posso deixar de assinalar, a profunda tristeza, que a partida precoce deste bom amigo, causou em todos os que o conheciam e admiravam.
José Mário Leite, in Mensageiro de Bragança, 5-II-2015.
Retomando prática em que terei sido pioneiro ‒ ser o autor a falar da sua obra, que deve conhecer minimamente ‒, apresento, agora, o meu quinto romance, Passos Perdidos (na Âncora Editora, sob comando de um prático experimentado, António Baptista Lopes), agradecendo a generosidade de espaço mais do que centenário a que retorno, e rogando um olhar sereno dos leitores e eleitores que me ouvem, ou lêem, sobre um ano decisivo nas nossas vidas. A democracia definha; o Estado de direito é subvertido por serviços secretos ‒ que reconhecem as ilegalidades em que incorrem. Serei breve, para dar azo a debate que gostava seguisse estas palavras, dedicadas a Amigo que o sofrimento retém em casa: Amadeu Ferreira.
Quando três personagens sobem a escadaria da Assembleia da República, vencem o detector de metais e caem no salão-corredor exibindo seis painéis a óleo sobre tela de Columbano que retratam 22 heróis pátrios desde o século XIII, não podemos deixar de pensar, também, que os designados Passos Perdidos são uma imagem acusadora dos últimos dois séculos (desde 1821), em que o desleixo dos eleitos está longe de rivalizar com «os visionários D. Henrique e filho Afonso», e com aquele pequeno milhão de Quatrocentos, que deu novos mundos ao mundo. Eis o cerne do problema, qual chaga aberta no Portugal contemporâneo ‒ eleitos e sistema eleitoral, sobre que tanto se fala, sem proveito, e que o voto soberano não deveria caucionar.
Duzentos e trinta deputados, ah!, se magníficos, seria música de esferas, senão puro maná; mas nem um filme sobre 12 magníficos faríamos, o que leva a perguntar da desrazão de alimentar sujeitos além dos 180, como prevê a Constituição. Já agora, esta, que começou a ser redigida há 40 anos, pode ser facilmente depurada.
Várias soluções estão previstas no diálogo entre dois estagiários de 24 anos, que representam a posição da juventude face à partidocracia. Desde a epígrafe, tirada da Arte de Furtar, alerta-se para amálgama entre Política e Razão de Estado, ambas reduzidas aos interesses mesquinhos de sujeitos privilegiados, e sem elevação, que se eternizam.
Conviria, diz a jornalista estagiária ‒ não somos todos estagiários da vida? ‒, «abrir os partidos à sociedade, a candidaturas independentes, como nas autárquicas, antes que a sociedade os encerre em si mesmos». Não desejo o fim dos partidos; estes é que, sem a qualidade exigível, não podem ser senhores de um destino colectivo. Mais: votando em partido, e em círculo nacional, devemos poder votar num candidato da nossa preferência, e não forçados a eleger os que são postos à boca do tacho, seja, nos primeiros lugares da lista. Entendo que a eleição uninominal só aterroriza inseguros, autocratas, que não merecem a confiança do eleitorado.
Argumenta-se que reduzir a Assembleia a 180 significa, além de demagogia (como, se está previsto na Constituição?), ferir a proporcionalidade e reduzir a nada regiões do interior. Ora, a regra histórica é a desproporcionalidade, que só muda no grau ‒ e já nem falo de troikas e comissários europeus não-eleitos, que governam as nossas vidas. Entretanto, acautelem presença digna das regiões, começando por abolir a disposição constitucional que proíbe partidos regionais. Por que razão um partido do Chiado, alegadamente nacional, há-de disputar percentagens vergonhosas, e não se admitir uma força declaradamente regional?
Na Lírica de João Mínimo, há um poema, datado de Coimbra, Dezembro de 1820 ‒ em vésperas de entrarmos no regime demo-parlamentar que nos governa ‒, em que Almeida Garrett, aludindo aos deputados, os avisa de que os olhos do mundo e dos portugueses estão sobre eles e que devem tremer do julgamento que prestaram: «tremei; que um Deus ouviu, que ouviu a patria, / Que os seculos vindouros vos aguardam; / E no recto provir, ou gloria, ou mancha, / Com sêllo eterno vos espera a fama.» O século XIX, todavia, vai rir-se de eleitos que não eram melhores que os de hoje. Lembro um candidato madeirense à «dobadoura parlamentar», que já projectava lei, cujo artigo primeiro permitia «a todo o belleguim eleitural o poder mamar na vacca do estado, sem pagar direitos de mercê, nem contribuição alguma».
O deputado dividia-se, então, em janota e pé-de-boi. Aquele, jovem e vestindo à parisiense, luneta, «tem ordinariamente desde a edade legal até aos quarenta annos». Tenho um assim, sem luneta, mas sexy. Prima por chegar tarde, sentar-se, vaguear pela sala, cumprimentar repetidas vezes, complacente para as galerias. O janota representa-se «ordinariamente a si e à sua toilette». No seu «borboletismo», vai de partido em partido: «Os maldizentes chamam a isso falta de carácter, elasticidade de consciência, frouxidão política, moléstia de S. Bento, etc.»
O segundo, respeitável, «verdadeiro pae da pátria», parece mais velho do que esta, é um pé-de-boi, gebo parlamentar, calva semicircular ou chinó. Move-se entre «dois colarinhos monumentaes», usa «colete de rebuço descommunal», grave, sossegado, roncando, se dorme, e, acordado, prefere ‘ordem’, enquanto a janotagem grita ‘apoiado’. «O deputado pé de boi representa o seu voto.» Mas essa de ‘pai de pátria’ intrigava um tal Silva Costa, que cito da Gazeta Literária (1867): «Dizem que o deputado é um pae da pátria… ora tendo a pátria tantos paes, dá uma ideia pouco favorável da virtude de sua mãe. Isto é lógico. Que um pae tenha muitas filhas, é natural, comprehende-se: mas que uma filha tenha muitos paes… não há explicação possível… sem offender a moral.» Quanto a essa imagem, dou outros exemplos de Latino Coelho a Ramalho, de Eça a Teixeira de Queirós ‒ na minha edição de A Queda Dum Anjo, que começou a sair em folhetim há 150 anos, e foi primeira inspiração…
Há outro aspecto, gravoso: a promiscuidade entre finança e política, que desencadeia a acção do romance. Com efeito, um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cristão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Nunca saberemos que projecto de lei é esse, porque o fundamental está alhures, para não dizer além da lei. Como se chega ao desplante de invadir a Casa da Democracia com intenções viscosas? E justificar esse silêncio de túmulo, vivido, afinal, entre chantagem de colega deputada e lembrança de amor único, talvez perdido?
Neste universo de sambenitos, figuras secundárias tornam-se mais importantes do que julgaríamos, e talvez esse deputado não seja tão estúpido como ressalta da enunciação de um jovem narrador, perdido em custoso amadurecimento, fruto de família desagregada. Mas é a vingança que tudo move, apoiada em razão antiga ou recente, e confunde deputada da oposição, não sem vitimar esse eleito janota, mais calhado para passerelles de moda. Desvela-se a morte parlamentar de extrema-esquerda inconsequente (gostaria de me enganar, e que a esquerda estivesse menos fragmentada), mas também sai criticado um partido nem carne nem peixe... Certo é que os partidos não olham para dentro de si mesmos, nem percebem que o povo não é parvo ‒ com a diferença de que tem menos benesses e se revoltará, um dia. Perguntada se vota, responde a jornalista:
«‒ Nestas múmias?
‒ Não me lembre o Museu Britânico...
‒ Deixem-me rir… Quem os conhece? Para os anos que exercem, e matérias tão sensíveis, onde é que estudaram? Ou só eles é que não precisam de estudar? Trocava lá a praia por indivíduos que não inspiram confiança…
‒ …Que, se pudessem, comiam-na viva, qual lagosta das águas territoriais portuguesas.
‒ Lá isso, acredito. Quando posso, vou aos museus.
‒ Como eu. ‒ Enfim: também sou pouco de museus. ‒ E se fosse obrigatório?
‒ Votar? Sem alterações de fundo, nas atitudes e nas escolhas? Sem saber donde lhes vem o dinheiro, quando deviam ser modelos de transparência? Porque seria melhor a ditadura dos partidos, que se encostam ao próprio interesse?»
A abstenção é já um aviso.
Discursos inócuos ou repetitivos reflectem outros tantos passos perdidos que a Constituição e legislaturas fracas não transformaram. Aproveito para inscrever em ficção uma das pérolas dos anais parlamentares, lançada por senhora que conheci na juventude: «O meu medo é o do inconseguimento… o inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise.»
Se a glosa do camiliano A Queda Dum Anjo é evidente, será menos o único e longo discurso de João Félix Filostrato, adaptado de outro, do futuro chefe progressista José Luciano de Castro, em 1865. Ou seja: as boas intenções deslizando da tribuna parlamentar ficam sempre em águas de bacalhau. E, claro, não podemos continuar nisto. Reflexão sobre a democracia em semana pascal ‒ seja, entre os próximos dias 1 e 9 de Abril ‒, esta fábula política é, todavia, salva, no final, por um bem enredado discurso amoroso. O que São Bento tem de chorrilho e lábia inútil, tem a saudade amorosa de recato e grata consequência. E, sendo estagiários da vida, resta-nos gozar a felicidade…
Gostava de assinalar outros pormenores da vida nacional que não ficam nas entrelinhas: a acção deletéria dos meios de comunicação (em particular, da televisão), quando podiam ser escola de virtude, de esclarecimento, de humilde busca da verdade, sempre fugidia; a excessiva opinião que os inunda, encabeçada pelos filósofos da bola em sua língua de trapos; a trivialidade de figurinos e figurões, heróis do efémero (que substituirão, um dia, os painéis de Columbano), face aos quais, além da democracia e do Estado de direito, também o país-nação definha.
Num misto de corrosivo social e relações oblíquas, entre logros e acentos policiários, julgo que se lê com prazer este romance-divertimento, embora sério nas questões elencadas e na lição moral que dele se evola. Desejo que as frentes política, financeira e jornalística não distraiam das decisivas (para bem e para mal) relações familiares em jogo, que tudo determinam, ora mostrando a mesquinhez da inveja, ora pacificando insofridos corações, em final feliz; enfim, quem me dera fosse degustado ‒ na ironia, na sugestão, em cada um dos vocábulos longamente estudados ‒, fosse saboreado, dizia, o ritmo que imprimi a este, não raro evanescente, não raro cru, monumento verbal. A par de ingredientes da velha escola folhetinesca ‒ origens enigmáticas de filhos entregues à roda, irmãs gémeas, formas de reconhecimento, amor omnia vincit ‒, estas páginas querem-se interventivas, sim, na chaga aberta do nosso sistema político; acima de tudo, porém, é meu sonho que elas sobrevivam no voto que me orienta, seja, enquanto consciência da literatura. Está aberto o debate.
[Apresentação, pelo autor, de Passos Perdidos, no dia 25 de Fevereiro, na Livraria Ferin, Lisboa.]
Caríssimos: o romance Passos Perdidos é lançado logo, às 18,30h, na Livraria Ferin, Rua Nova do Almada. Amanhã, 26, às 14h, tenho Baptista-Bastos na Faculdade de Letras de Lisboa (Anfiteatro II), para conversa com os alunos sobre jornalismo, crónica, etc., e apresentação de Lisboa em Baptista-Bastos (também na Âncora Editora). Sejam bem-vindos!
A Âncora Editora e a Livraria Ferin têm o prazer de a/o convidar para o lançamento do romance Passos Perdidos, de Ernesto Rodrigues. A obra será apresentada pelo autor. A sessão terá lugar no próximo dia 25 de Fevereiro, quarta-feira, pelas 18:30 horas, na Livraria Ferin, Rua Nova do Almada, 70-74, Lisboa.
Convido para o lançamento do romance Passos Perdidos, no dia 25 de Fevereiro, às 18,30h, na Livraria Ferin, Rua Nova do Almada, 70-74, Lisboa.
Sinopse:
Um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cristão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Quem é João Félix Filostrato? a que se deve esse silêncio? Em iniciativa mediada pela assessora do grupo parlamentar, Salomé - que promove encontro com o economista-chefe João Félix Exposto, Nádia e o estagiário João Félix, também narrador -, sobressai a jornalista Joana, por quem passa a história do eleito por Vila Franca e a solução de alguns enigmas. Na sombra, cresce deputada da oposição, cuja biografia se enlaça na deste. Como se organiza a queda de um anjo? Entre comportamentos oblíquos e identidades sempre esquivas, um deputado-borboleta da extrema-esquerda torna-se vítima de predadoras, e perdedoras, que visam vingança em várias frentes.
Quase dois séculos de regime parlamentar e discursos inócuos ou repetitivos reflectem outros tantos passos perdidos que a Constituição de 1976 e legislaturas fracas não transformaram. Reflexão sobre a democracia em semana pascal, esta fábula política é salva, no final, por um bem enredado discurso amoroso.
Este confirmado romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande mestria, acutilância e sentido de opalinidade histórica os tempos hodiernos, no geral, e os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em particular. Enresto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no santuário da democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao presente.
O título Passos Perdidos só é identificável pela fotografia do espaço homónimo do edifício da Assembleia da República que serve de capa ao romance. No entanto, este título é polissémico, uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram, também, os intentos dos corruptores.
A obra abre com uma epígrafe retirada da Arte de Furtar, capítulo LX, “Dos que furtam com unhas políticas”, que dá, ab initio, o mote para a trama do romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o tema a escalpelizar na obra.
Passos Perdidos erguer-se como uma obra fortemente estruturada, visto que é composto por dezasseis capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito capítulos) ‒ note-se a simetria ‒, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A queda de um Anjo”, que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor a obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é, de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte do romance, “Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em relação ao modelo literário adotado por Ernesto Rodrigues. Temos, então, uma queda mais metafórica do que real, uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para desvendar o ardil, por um lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por outro.
Que Camilo e Eça, nomeado na obra pelo título do romance O Primo Basílio (p. 101), são vultos a quem Ernesto Rodrigues presta contínua e apurada homenagem corrobora-o, para além do que já foi dito, o facto de a intriga do romance ser narrada, nos onze primeiros capítulos, em analepse pela personagem João Felix Exposto. Este narrador/personagem é fruto de uma relação da juventude do deputado João Félix Filostrato, que, também, ignorava este facto. O ritmo cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a fazer lembrar os dois romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado da história prendem o leitor ao texto.
O tempo da ação, à semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado em, apenas, nove dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de uma representação teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão sendo apreendidos pelo leitor.
Porquê literatura? Porque o romance está pejado de referências literárias tanto explícitas como implícitas. Permito-me, apenas, recordar, não querendo ser exaustivo: Camões, Bocage e Garrett. Termino com a alusão à “Lacailândia”, isto é, Portugal, onde ressoam ecos da obra A Montanha da Água Lilás de Pepetela.
Todo o romance é um retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz de Eça. É patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual, recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo, como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.
Concluímos, asseverando que Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários, que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos Perdidos não destoam das que Camilo perpetuou, nos seus romances. Por outro lado, qualquer leitor mais atento desta obra não hesitará em apelidá-la de queirosiana, devido à forma como a realidade portuguesa atual, filtrada pela ironia, se encontra plasmada nele.
Conheço-te há mais de 40 anos. Foi em 1973 que começámos a “enfrentar-nos” nas páginas do Mensageiro de Bragança, onde ambos colaborávamos. A certa altura, fui obrigado a utilizar o pseudónimo José Valverde por sugestão do Padre Sampaio, já que tinha sido proscrito pelo Bispo de então e proibido de voltar a escrever para o jornal.
Durante dois meses contendemos no Mensageiro, tu contra um texto que eu havia publicado sobre a presidente da Academia do Liceu; eu, em resposta à tua crítica. Foram dias intensos.
Como te recordarás, criei o Grupo de Teatro Sequência e a nossa primeira atuação, realizada na Escola Comercial e Industrial, foi bem trabalhada e exigiu um grande esforço de toda a malta. A abertura consistia na leitura de alguns poemas de poetas transmontanos, seguindo-se a representação da peça que havíamos escolhido.
A tua crítica, publicada no jornal Ènié [1975], foi arrasadora. Na tua opinião, apenas se salvava a atriz principal. Tudo o resto foi tempo que o vento levou. Convém dizer que tu também tinhas uma companhia de Teatro, A Máscara, que dirigias. Vislumbro, aqui, uma ligeira dor de cotovelo…
O Teófilo, cansado de nos aturar, e sendo amigo de ambos, decidiu agir e juntou-nos no Café Girassol, no Largo do Tombeirinho. Conversámos… Desde então, alimentamos uma amizade segura e cúmplice.
Envolvemo-nos em muitas atividades de cariz cultural, entre as quais destaco a publicação do boletim Amigos de Bragança [1984-1986], juntamente com o Teófilo, e cujo director era o Dr. Eduardo de Carvalho. Posteriormente, juntaram-se ao grupo o Jacob e o Jorge Morais, responsável pela fotografia e design.
Sendo eu Presidente do Clube de Bragança, celebrei com a autarquia diversos protocolos, com o então Presidente da Câmara, Eng. José Luís Pinheiro, um dos quais nos permitiu publicar doze números do boletim.
Antes, em 1981, foste para Budapeste, onde te mantiveste até 1986. A partir de 1983, trocámos intensa correspondência, o mesmo acontecendo quando regressaste e te instalaste em Oeiras.
Viveste muita coisa. Escreveste muitos livros. Muitos mais escreverás. Fizeste muita investigação, muitos ensaios. Progrediste muito na tua vida académica. Viajaste pelo mundo em trabalho e algum lazer. Foste condecorado, premiado, reconhecido, acarinhado…
Não esqueceste a tua terra, as tuas origens, e por ela tens feito mais, muito mais que o poder político ou a maior parte dos que aqui vivem, que se acomodaram ao ramerrame das suas vidinhas.
Nesse caminhar incessante, encontraste a mulher da tua vida, tua igual, com quem podes ser tu, em todas as tuas nuances.
Aguardo, ansioso, poema novo que juntarei ao da Rua do Loreto, desta vez sem ironias, que os sonhos são para serem sonhados e eu continuo um sonhador.
A vida dá muitas voltas e reviravoltas e quando precisei de ti, meu amigo, tu estiveste lá. São poucos, aqueles a quem posso chamar grandes amigos…
Vai uma cerveja, amigo?
Bragança, 13 de dezembro de 2014
Marcolino Cepeda
[Na mesa-redonda da Jornada de 13 de Dezembro, sobre os 40 anos da Vida Literária de Ernesto Rodrigues.]
Os 40 anos da minha actividade literária fecharam com jornada na Biblioteca Municipal, promovida pela Câmara e Academia de Letras de Trás-os-Montes. Guardo em mim a presença de muitos ‒ desde logo, de amigos muito chegados há 47, 38 anos, e menos: José Mário Leite, Alcides Rodrigues, João Manuel Neto Jacob, Marcolino Cepeda, Hirondino Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara Cepeda. Alberto Fernandes não quis falar ‒ e só ele poderia falar do editor que também fui. O Pai aguentou todo o dia, e foi aplaudido num momento de intervenção da Teresa. Presidente do município e quatro vereadores abrilhantarm o acto. Discretas, directoras do Teatro e do Museu do Abade de Baçal: Helena Genésio, Ana Maria Afonso. Vários escritores.
Após discursos de Hernâni Dias, Amadeu Ferreira, José Manuel Mndes e José Eduardo Franco ‒ este, à volta de Fernão de Oliveira e O Romance do Gramático ‒, veio discurso meu. Segue:
«Inaugurei a celebração de 40 anos de vida literária, hoje culminando em jornada para mim comovente, com o lançamento de colectânea de poemas ‒ Do Movimento Operário e Outras Viagens ‒ e do romance A Casa de Bragança. Ora, em final de capítulo deste, a propósito da justeza e bondade do rei D. Pedro para com a cidade, escrevi o seguinte: «Pão e vinho eram, nestas terras, meia mantença; a gratidão, vida inteira de transmontano, que no príncipe se revia.»
É de alma cheia, e reconhecido a esta terra, que me cumpre agradecer ao executivo municipal, relevando a interlocução da vereadora da Cultura e de Fátima Martins. Com esta trabalhara já no executivo do Eng. António Jorge Nunes, que também saúdo (grato pelo seu depoimento fílmico), sob cujo impulso nasceu a Academia, agora dirigida pelo querido Amadeu Ferreira, ausente por razões de saúde, mas bem coadjuvado pelo vice-presidente, que não se furtou a esforços para esta realização.
A ideia, contudo, desta selecta reunião partiu do realizador Leonel Brito, caucionada por Teresa Martins Marques. Esta sabe bem que sou avesso a tais comemorações. Nessa cumplicidade, moveu aquele montanhas, e gizou um programa de que só parcelarmente fui tomando conhecimento. Propus uma manhã, em que falassem duas autoridades: José Manuel Mendes, com quem estive na sua primeira direcção da Associação Portuguesa de Escritores, que ainda capitaneia, e, por razão de agenda, se fez substituir com um notável texto de síntese, e José Eduardo Franco, director de um centro de investigação (de que sou director-adjunto), cujo feito mais recente é a conclusão de um António Vieira em 30 volumes, em que aparece a nossa Academia de Letras como patrocinadora. Tendo ele escrito sobre o nosso primeiro gramático, editado a Gramática da Linguagem Portuguesa (1536) e recenseado O Romance do Gramático, que editei em 2011, estava calhado para um convite. Mas, entretanto, estava almoço combinado, no Solar Bragançano aonde, no fecho de A Casa de Bragança, também se dirigem as personagens ‒ que, às vezes, é bom imitar; e, para justificar esse pão e vinho, alargou-se a festa, na esperança de que a hora pós-prandial não faça adormecer a mesa-redonda.
Nesta, estão amigos chegados ‒ Pinelo Tiza, Alberto Fernandes, Teófilo Valdemar, Mara Cepeda, Marcolino Cepeda ‒, enquanto outros se viram incapacitados de acorrer, dada a brevidade na preparação do evento. Poderiam estar no documentário ‒ e nomes há que se repetem: Teresa Martins Marques, José Mário Leite, Neto Jacob, Hirondino Fernandes ‒, mas, no entretempo, o guião remeteu para o momento genesíaco de 1973 ‒ melhor, entre 1971 e 1974 ‒, sem prejuízo de um balanço factual e estético por Amadeu Ferreira e José Manuel Mendes. Como A Casa de Bragança fechava a cúpula de quatro decénios, versaram-na José Mário Leite ‒ amigo há 47 anos ‒, o editor António Baptista Lopes e quem, intelectual maior agora com 92 anos, me dá a honra de fartas conversas no Jardim da Estrela: José-Augusto França. Carlos Pires publicou os meus primeiros versos, aos 14 anos, no Mensageiro de Bragança; nesse 1971, troquei o Seminário de S. José pelo Colégio de S. João de Brito, conhecendo, entre leituras heteróclitas, Desidério Martins e a malta d’OGrupo, título de jornal, de que, hoje, só encontro António Ramos Preto e Alcides Rodrigues.
Estes, por quem me chegaram os dilectos Alberto Fernandes, Victor Rodrigues, António Augusto Coelho Alves, José Nobre, apanhei-os no então 7.º ano do Liceu Nacional, quando aqui ingressei, no 6.º ano, colega de José Mário Leite (abandonara o seminário) e Neto Jacob, que evoca a nossa equipa de andebol. Eu estava mais para xadrez, livros e jornais, nesse 1972 publicando, já, versos no Diário Popular, tal como Desidério Martins, com que nos vimos antologiados por Maria Alberta Meneres em O Poeta Faz-se aos Dez Anos (Assírio & Alvim, 1973). Neste ano, já dirigindo a página literária do Mensageiro de Bragança, estreei-me em livro, culpado do incómodo que vos dou.
Inconvencional teve apoios fundamentais: Domingos Neto, autor da capa, e Alcides Rodrigues, a quem ofereci texto-base, que (surpresa!), me devolveu há semanas. Meu Pai foi decisivo: 500 exemplares custavam sete mil escudos; pedi-lhe cinco contos, pois, entretanto, recuperei dois mil escudos, nas vendas, e assim paguei a quarto mosqueteiro, Frei Henrique Perdigão, chefe das máquinas nos franciscanos de Montariol, Braga.
Em noite diluviana do mês de Maria, acolheu ele o noviço das letras, banqueteou-me em mesa austera, levou aos granéis de Inconvencional e ofereceu generosa cela. Revimo-nos 33 anos depois. Eu estava na Feira do Livro e contava a Vergílio Alberto Vieira essa primeira ida a Braga, quando a Teresa impôs subida. Boleados, dirigi-me à portaria: «Frei Perdigão ainda é vivo?» Eis uma frase camiliana. Camiliano é o início de A Casa de Bragança: «Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.» Vejam o início de Mistérios de Lisboa: «Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era.» Do frade eu guardava memória de ser de muitos dias. E o recepcionista, espantado: «Sim. Está além a conversar com umas pessoas.» A sala era obscura; eu estava em vésperas de um descolamento de retina. Vislumbrei um ainda poderoso frade, aos 69 anos, que, encerrada a gráfica, explorava o húmus do convento em ervas e medicinas do corpo. «Frei Perdigão?» «Sim. Quem me procura?» «Sou Ernesto Rodrigues.» «Não é de Bragança, pois não?» Ele não aceitava que aquele cinquentão substituísse retrato antigo, ousado como o menino do poema oitavo d’OGuardador de Rebanhos. «Sim, sou.» «Não me diga!» E desatou no elogio da obra e criança que, fora de horas, batera à porta do silêncio… Vivi cinco anos dentro das paredes de dois seminários, mas tive naquele frade o único abraço caloroso de um ministro do Céu. Não é pouco, se isso deram uns versos mal-educados, com palavras feias manchando os caracteres da tipografia divina.
Não se imagina, com efeito, o impacto desse livro na placidez de cidade perfilada atrás das autoridades civis, militares e religiosas, cuja moral defendiam legionários e informadores da Pide. Abria com “Poemas em café democrata”, referência ao Chave d’Ouro e às potencialidades, também estéticas, da democracia. Pasmo, aqui e ali, da virulência de juventude, cínica e politizada nos termos, mas, sobretudo, no desconcerto entre título e texto (v. g., “Poema a olhar uma cabra”). Como podia suportar um regime atrás das fragas – «e afinal a política está de cama», resumi – esses “Poemas em café democrata”, tanta desobediência e subversão? Passeavam-se Mário de Sá-Carneiro, Pascoaes e Régio, sugestões de José Gomes Ferreira, Eugénio de Andrade... Notava-se a queda para ‘histórias’, para uma narratividade que me persegue; tinha imagens fortes: a «espera destilada / e cinzenta da concepção», ou, encostados à Sé, vendo «Velha virgulada [que] passa na estrada». Os colegas abriam na p. 41, onde se fechava aventura de uma infeliz, socialmente explorada, a quem a hipocrisia chamava «puta reles». Era um crime de lesa-poesia, como descrever as dores de parto de um animal, abrindo naturalmente por «Tudo lhe doía», e, quando primeiramente saído no Mensageiro de Bragança, ser o padre Manuel Sampaio chamado à pedra pelo senhor bispo Manuel de Jesus Pereira… Eis um retrato, pálido embora, do quadro mental bragançano, nos idos de 70, e como a arte mexe com a opinião, altera comportamentos, derrui e reconstrói formas de expressão ‒ a começar numa capa insólita, que até se atrevia a dar lugar a um preto…
Sou um homem que acredita ‒ ou não estaríamos aqui; em segundo lugar, e fecho de discurso, faz-me bem provar gratidão ‒ à autarquia, à Academia, a Leonel Brito, ao editor do também último romance, Passos Perdidos, e da minha Biobibliografia em volume, bem como ao pessoal da Biblioteca, expondo livros que nela ficarão ‒, provar gratidão, dizia, pois, conclui personagem de romance inédito, «A ingratidão cria musgo no coração dos homens». É limpo e inteiro que agradeço tantas atenções.»
Almoço no Solar Bragançano deixou-nos com água na boca: se não deixássemos a festa a meio, não havia mesa-redonda, moderada por António Tiza. O filme de uma hora ficará como documento mais importante sobre publicações desde 1969, como prova Biobibliografia ofertada aos presentes. Da Bibliografia expus parte, em cinco vitrinas. Sobre as primícias discorreramm Alcides Rodrigues, Carlos Pires, José Mário Leite, Frei Henrique Perdigão, Desidério Martins, Neto Jacob, Teresa Martins Marques, e, já em visões de conjunto da obra, José Manuel Mendes, Hirondino Fernandes e Amadeu Ferreira, enquanto José-Augusto França curou de A Casa de Bragança, o editor António Baptista Lopes descreveu relação antiga, desde Torre de Dona Chama (1994), e António Jorge Nunes falou da relação entre o autarca-presidente e o primeiro presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Auto-apresentação de Passos Perdidos encerrou tarde e jornada muito concorrida pela Imprensa.